10$00 de tremoços
O meu avô era um homem grande. Robusto.
Não falava alto mas fazia-se ouvir. Tinha uma voz grave que ecoava pela casa inteira.
Tinha um certo medo dele. Não tinha o à vontade que tinha com a minha avó.
Não tinha coragem de abrir a boca e dizer quase a chorar:
- Ó vó se não tiver o pijama da Abelha Maia, morro.
Um drama à escala do meu mundinho pequeno não podia ser partilhado com aquele homem sério e importante.
Era a mais nova dos netos. Muitos já eram adultos, interessantes e com opiniões.
E a minha vida andava à volta da Abelha Maia, tulicreme e pouco mais.
Muitas vezes achava que ele não dava conta da minha existência. Muitas vezes passava em bicos de pés à porta do escritório dele para não ser vista.
Respirava baixinho.
E quando o perigo passava largava a correr até aos braços da minha avó.
Enganei-me...
...acordei muitas vezes de noite com o meu avô a zelar pelo meu sono. Eu, asmática desde que nasci, tinha noites más, verdadeiramente más. Andar a rebolar no feno do palheiro não ajudava muito. Ou melhor, não ajudava nada.
Muitas noites quando a falta de ar era mais do que muita, o meu avô pegava em mim ao colo e levava-me para a rua para que o ar entrasse nos meus pulmões.
Em dias mesmo, mesmo bons.
O meu avô pegava na minha mão.
Descíamos até à cidade.
Dava-me 20$00 e dizia-me:
- Vai lá à ti Alzira comprar 10$00 de tremoços. Diz para ela ficar com o troco.
Eu lá ia. Tão feliz por tamanha responsabilidade. Voltava com um cartuchinho de tremoços que dava ao meu avô.
- Fica com eles. Eu vou tirando.
Eu com o cartuchinho na mão.
Feliz por ser a "dona" dos tremoços.
Muito alerta para não deixar cair os tremoços para o chão.
Com as minhas mãozinhas magritas e pequenas segurava com todas as forças que tinha, o maior tesouro do mundo. 10$00 de tremoços.
Agora tiro eu um tremoço. Agora tiras tu. E assim fazíamos o caminho de regresso para casa.
Outras vezes, o meu avô levava-me à cidade. Entrávamos no café.
O meu avô bebia uma cerveja. E comprava-me um gelado. Um chupa-chupa. Ou um chapéu de chuva de chocolate. Nada era tão saboroso como os tremoços.
Demorei muito tempo a perceber porquê.
Percebo hoje que eram mais saborosos porque eram partilhados.
A partilha não é para ser apregoada. A partilha é para ser praticada.
Ainda hoje percebi isso. Aqui em casa.
A Alice a partilhar uma laranja com o Pedro.
Agora tiro eu um gomo. Agora tiras tu.
Nenhum deles é apreciador de laranjas....
mas acredito que tenha sido para os dois o mais saboroso manjar....
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