aconteceu mesmo.....
O meu tio João, irmão da minha mãe morou muitos anos nos EUA.
Foi para lá estudar gestão. E ficou.
Apaixonou-se. Casou-se. E teve dois filhos.
Em 1986, o meu avô materno decidiu que já era tempo de se retirar das empresas.
Falou com os filhos todos e ninguém manifestou interesse em ficar no lugar dele.
Eram empresas da família que ninguém queria ver geridas por estranhos.
Vender? Também não era solução. Ninguém via com muito bons olhos a venda das empresas.
Estávamos num impasse. O que fazer?
Fomos salvos pelo meu tio João.
Voltou para Portugal com a mulher, a minha tia Ingrid e com os meus primos.
Chegaram em Abril de 86.
Primeiramente, ficaram em casa dos meus avós mas pouco depois arranjaram casa própria no Porto.
A minha avó Adélia, conservadora e 100% devota descobriu que o filho tinha casado apenas pelo civil.
E não, os meus avós não tinham ido ao casamento. Primeiro porque as viagens eram um pouco diferentes do que são hoje mas principalmente porque a minha avó não entrava num avião nem que estivesse em coma.
A descoberta de que o filho e a nora, já com dois filhos, não estavam casados pela igreja foi como se lhe tivessem arrancado um rim, a sangue frio. E tratou logo disso.
Nem se preocupou em perguntar ao casal, se por acaso estariam interessados em casar pela igreja. Não!
Arranjou tudo por ela e comunicou-lhes: dia 17 de Maio têm casamento marcado na Igreja de Santa Luzia em Viana do Castelo.
A minha avó já tinha organizado tudo. A parte religiosa, o copo de água e os convites.
O meu tio João e a minha tia Ingrid estavam-se nas tintas se casavam ou não. E não quiseram entrar em confronto. Aceitaram.
No dia 17 de Maio de 1986 tinha 5 anos.
Estava numa fase muito glamourosa da minha vida.
O meu pai tinha-me levado ao aeroporto, uns meses antes, para ver os aviões levantar voo.
A partir daquele dia comecei a dizer que queria ser um avião.
Três dias antes do casamento, Joaninha experimentou voar.
Em plena rua Ferreira Borges, em Campo de Ourique, atirei-me do cimo de uma árvore.
Foi a primeira experiência que fiz do género.
Mal sucedida.
Joaninha não voou.
Por acaso até voei mas não da forma como estava a imaginar.
O meu irmão que assistiu a todo este espetáculo levou-me para casa.
A minha mãe quase teve um ataque cardíaco.
Nas vésperas do casamento do irmão, a menina das alianças, eu, estava assim. Sem ponta por onde pegar.
Um galo na cabeça. Os joelhos esfolados. Os cotovelos todos raspados.
- O que raio é que te aconteceu?
- A Joana caiu. Respondeu o meu irmão. Sem referir que tinha caído de uma árvore.
Eu chorava. Tudo me doía...
Ou melhor. Eu não chorava. Eu berrava....
- Ai Deus mas como é que a Joana vai entrar na igreja neste estado. Atirava a minha irmã.
Tudo tem solução, menos a morte e eu ainda estava viva.
Aliás, até estava muito viva, pelo menos sentia muito bem as dores.
A minha mãe passou a noite a baixar a baínha do meu vestido. Branco. De princesa.
Eu a experimentá-lo para ver se se via os joelhos esfolados.
E a minha irmã passou a noite a aplicar-me gelo na cabeça.
Pomada às toneladas.
E mais gelo.
E pomada.
O galo acabou por ceder.
Sexta-feira quando rumámos até ao norte, mal se notava. E o vestido tapava os joelhos.
Mau, mesmo, é que a minha mãe não tirava os olhos de mim.
Medo que eu fosse contra uma árvore ou um poste de eletricidade.
O casamento era às 10h.
Chegámos um pouco antes.
A noiva atrasou-se imenso.
Não por ser noiva mas porque a minha tia Ingrid era mãe.
E uma mãe é uma mãe, mesmo no dia do casamento.
A minha avó Adélia espumava.
E a minha mãe sempre a controlar-me.
Quase morri de tédio.
Eu era a mais nova dos meu primos.
Eram todos rapazes excepto a minha irmã que já tinha 15 anos.
Ninguém me ligava.
Estava vestida de branco para levar as alianças.
E com a minha mãe sempre a olhar para mim.
Só que Deus é grande. E é meu amigo.
A minha avó Adélia chamou a minha mãe.
- João toma conta da Joana. Disse a minha mãe ao meu pai.
Ah! Estava entregue aos cuidados do meu pai. E queria ser um avião.
Não me dava por vencida.
Falhei à primeira mas não ia falhar à segunda.
Já tinha debaixo de olho um muro, capaz de testemunhar tamanha façanha. Aquele muro ia ver-me voar!
E sem o meu pai dar conta. Afastei-me. Subi ao muro. E atirei-me.
Voei??? Podemos falar sobre isso noutra altura?
Em menos de nada tinha ao meu lado a minha família toda.
A minha mãe desvairada.
- JOOOOOOOÃO foi só por um minuto! O que raio é que estavas a fazer??? Esta miúda precisa de 20 olhos nela..
Tentaram levantar-me mas tinha dores horríveis.
Estava paralisada do lado direito. Não me conseguia mexer.
Chamaram uma ambulância. Não havia telemóveis e foi também todo um filme.
Fui para o hospital.
Tinha a clavícula partida.
Escusado será dizer que a minha mãe, o meu pai e os meus irmãos não foram ao casamento do meu tio João.
Fiquei em observação mais um tempo. Como tinha ficado meia paralisada queriam ter a certeza que não era nada.
À tarde. À tardinha.
Apareceu o meu tio João e a minha tia Ingrid. Já casados.
Trouxeram-me uma fatia de bolo. Partiram o bolo de noiva mais cedo para eu poder comer.
E o meu tio João para me reconfortar disse-me assim:
- Joaninha, não estejas triste. Fica aqui combinado. No dia 17 de Maio de 2017 vamos todos comer bolo.
-?
- Em 2016 fazemos 30 anos de casados é uma data redondinha. Em 2017 fazemos 31. Comemoramos contigo...
- Ainda falta tanto!
Ao longo da nossa vida fomos falando sobre isso. Sempre a rir.
- Não se esqueça, tio, 17 de Maio de 2017!! Disse-lhe eu quando tinha 10, 15, 20 ...30 anos.
- Então Joaninha, não te esqueças dia 17 de Maio de 2017!! Dizia-me o meu tio pelos Natais, anos e sempre que falávamos ao telefone ou estávamos juntos.
Parecia algo inatingível.
Parecia impossível de alcançar. Tal e qual como eu querer ser um avião.
Ontem já passava das 16h e estava num parque aqui de Oslo. Para quem conhece Oslo estava no parque das esculturas. Recebo uma mensagem do meu tio João.
- Então Joana, como estás? Por onde andas?
- Estou bem.
- E onde estás?
- Estou em Oslo.
- Eu sei que estás em Oslo! Estás em casa?
- Não. Estou num parque.
- Como se chama o parque?
- Vigeland.
Estranhei...mas...
Qual não é o meu espanto quando passado uns 20 minutos recebo um telefonema.
- Ainda estás no parque?
- Estou.
- Nós estamos aqui junto a umas escadas que estão rodeadas de estátuas. Sabes onde é?
- Na Noruega?? Têm a certeza? Vocês estão em Oslo?
Respondi eu. Mesmo não acreditando já ia a caminho.
Com passo apressado a puxar o Vasco. Lento. Lentinho. O meu caracolinho....
- Joaninha. Hoje é dia 17 de Maio de 2017. Esqueceste-te?
E pronto.
Era uma vez, uma Joana que nunca conseguiu ser um avião. Mas que por ter tentado ser um, estava prestes a viver um momento tantas vezes falado mas assim mesmo...muito inesperado!
E ao longe avistei o meu tio João e a minha tia Ingrid.
E só tive tempo de me atirar para cima deles. Ninguém partiu a clavícula desta vez...
Comemorámos juntos os 31 anos de casados.
Comemos uma iguaria norueguesa que tem todo o aspeto de ser uma porcaria feita de batata mas era um dia especial!
E depois jantámos em minha casa.
Ontem foi a prova de que os milagres podem acontecer.
Mas para acontecerem temos de lhes dar uma mão?
Uma clavícula?
Não. Não!
Temos de querer ser um avião!