Julieta
Tudo começou com a minha vinda para Portugal.
Estava eu com a perna partida. Em casa. E com dores.
Recebo um telefonema do Sr. Ludovino.
- Joana, um gato, anda a rondar o nosso prédio.
- ?
Percebi um gato. Mas pelo tom de voz. E pela gravidade desse tom de voz deveria ter percebido.
- Joana, um tigre, anda a rondar o nosso prédio.
Ou
- Joana, um leão, anda a rondar o nosso prédio.
Ou ainda.
- Joana, um crocodilo, anda a rondar o nosso prédio.
Mas não. Era um gato!
Ficámos por aqui. Andava um gato a rondar. O que podia eu fazer. No estado em que eu estava.
No dia em que tirei o gesso passei por Carcavelos.
Mal o meu pai estacionou o carro. Na garagem. Salta-nos em cima o Sr. Ludovino.
- Cuidado, cuidado com o rubi.
- Cuidado com o quê??
Mal digo isto, olho e vejo num canto, uma caixinha de comida para gato. Um cobertor. E uma caixinha com água.
E veio-me à cabeça o gato que andava a rondar o prédio.
Volto a Carcavelos uns dias mais tarde.
No dia em que fiz a escritura da casa. Para fazer uma visita aos meus novos aposentos.
E...
- Joana, não queres ir ver a Pérola??
- Pérola?? Quem é a Pérola???
- Ó rapariga! E eu é que estou velho??? Ainda outro dia estiveste com ela e já não te lembras..
- Eu? Não conheço Pérola nenhuma..
- A gata!
- Não me diga que é uma ninhada de gatos??? Uma gata??
- É a mesma.
- Não era Rubi?
- Mudei-lhe o nome. Virei-a ao contrário e percebi que era uma gata.
Lá fomos ver a gata.
Já não estava na garagem. Tinha os seus aposentos, qual princesa do agreste, à entrada do prédio.
Chamei-a. Andou a vaguear pelas minhas pernas. Fiz-lhe festas. Ela acatou bem.
Muito ternurenta a Pérola...
Estava um dia de manhã cedo. Com o cão a infernizar-me a vida. E a Alice a não colaborar.
Toca o telemóvel.
Senhor Ludovino.
Do outro lado. Uma voz desanimada.
- A Esmeralda fugiu.
Com a Alice num braço. O telemóvel no outro. O Vasco a querer abocanhar os bifes congelados que estavam dentro de uma caixa na bancada da cozinha.
- Quem é a Esmeralda?
Do outro lado. A pessoa passou-se.
- Joana, tens uma pedra no lugar do coração. A gata!
- A Pérola?
- Que diferença faz? Aqueles homens das obras...não sabem fechar a porta. E deu nisto. A Esmeralda fugiu.
O Vasco quase a chegar aos bifes. A Alice a puxar-me o cabelo. E eu a gerir a crise do Sr. Ludovino.
Que bela artista de circo! Joana, sim senhor!
- Vai ver que ela aparece. Já tem aí a sua casa. Foi só dar uma volta!
Ficámos por aqui.
As vezes seguintes que fui a Carcavelos não vi a gata mas também não perguntei. Sobretudo porque me esqueci de perguntar.
No fim de semana passado. Estava em Angola.
Domingo. 30º.
Não se trabalha ao Domingo.
E por isso eu estava concentradíssima. Ora na piscina. Ora a ler um livro. Ou a tricotar.
Estava a ser tão feliz naquela piscina.
Toca o meu telemóvel.
Sr. Ludovino.
- Joana, a Preciosa está ferida.
- Está tudo bem?
- Não! A Preciosa está ferida. Ó rapariga mas não ouves o que te dizem??
Respirei fundo. Sinceramente, nem me lembrava da gata já.
- A Preciosa...não estou a acompanhar...
- Ai! Mas voltamos ao mesmo, rapariga. A gata! Quem é que havia de ser...
- Ah!
- Ah??? Não fazes nada.
- Sr. Ludovino, estou em Angola.
- Em Angola, em Angola.
E desligou o telefone.
Fiquei preocupada.
Liguei para o Rui, o veterinário do Vasco. Uma joia de moço. Um coração do tamanho do mundo.
Perguntei-lhe se não se importava de passar por Carcavelos. Como veterinário, saberia resolver a crise. Com a gata.
Com o Sr. Ludovino seria outra conversa.
O Rui disse-me que sim. Que passava por lá.
Fiquei descansada. E continuei a minha vida difícil.
A trabalhar por turnos.
Piscina.
Livro.
Tricot.
30º.
Toca o telemóvel.
Senhor Ludovino.
- Joana, está aqui um homem.
- É o Rui??
- Onde é que estás?
- Estou em Angola...
- Ainda estás em Angola?? Que raio de administradora és tu...que vais para Angola e deixas o prédio à mercê de um homem qualquer???
- Não é um homem qualquer, é o veterinário do Vasco. Deixe-o trabalhar.
- Ele quer levar a Preciosa.
- É porque ela precisa. Não se preocupe. Depois acerto contas com ele.
Resumindo.
Cheguei a Lisboa na terça feira de manhã.
Pela tarde fui buscar a gata. Estava ferida. Tratada, já. Os ferimentos eram ligeiros. Nada de preocupante.
E dei-lhe o nome de Julieta.
Nunca tive um gato na vida. Porque durante muito tempo fui alérgica.
Como muitas das minhas alergias se foram embora com o tempo, tenho esperança que a minha alergia aos gatos tenho ido também.
Por enquanto, nem um espirro. Nem olhos vermelhos. Nem lágrimas de crocodilo.
Está tudo bem.
A Julieta é muito querida. Tem porte real.
O trágico mesmo é que agora tenho dois companheiros de cama.
A Julieta de um lado.
E o Vasco do outro.
Estou me a transformar naquelas solteironas. Que cheiram a bolas de naftalina. Usam collants durante o ano todo.
E estão mais encalhadas que o tolan.
A foto da Julieta está no facebook do quiosque.