os meus feijões mágicos
A minha avó Maria contava-me histórias.
Desde que me lembro.
À noite. Na cozinha.
Depois do jantar.
Não havia televisão. Para ninguém.
Ficávamos a conversar todos.
Nunca me cansava de as ouvir.
E pedia todas as noites. Para ela me contar. Uma e outra vez.
A minha avó. Nunca contava as histórias como elas eram.
Quem conta um conto acrescenta um ponto.
E a minha avó acrescentava. Mudava. E recontava a história.
Provavelmente por não saber mesmo a história como deve ser.
E por isso recriava-a como se lembrava...
Era uma vez um menino chamado João.
Vivia no campo com a mãe.
Tinham como único sustento o que tiravam da terra e uma vaca.
Um dia a mãe ficou doente.
E não conseguia trabalhar.
Não tinham dinheiro para comprar medicamentos.
A mãe pediu ao João para ir à feira e vender a vaca.
E o João assim fez.
No caminho encontrou um velhote. Que lhe propôs o negócio seguinte.
Dás-me a vaca. E em troca dou-te estes feijões mágicos.
O João aceitou. Melhor que dinheiro são feijões mágicos.
Toda a gente sabe disso!
Quando o João chegou a casa. Contou à mãe.
Mostrou orgulhoso os feijões. Mágicos.
A mãe. Não queria acreditar.
Não tinham vaca. Não tinham dinheiro para comprar os medicamentos.
Tinham perdido tudo.
Em desespero e zangada. Atirou com os feijões janela fora.
No dia seguinte. João acordou. E os feijões tinham germinado.
O feijoeiro chegava ao infinito.
João subiu feijoeiro acima e só parou no céu.
E o céu. É o céu.
Só tem coisas boas.
- Ah! A mãe diz que o tio Luís está no céu..ele também tinha feijões mágicos?
- Não, Joana. O tio Luís estava muito velhinho e morreu.
- Mas morrer é mau...temos de morrer para ter feijões mágicos.
- Não. Claro que não. Só tens de os encontrar. E tomar conta deles...
- A avó já os encontrou??
- Já.
- Já!? Onde é que eles estavam?
- Alguns com a minha mãe, outros com o meu pai. Com o teu avô. Com o teu pai e com os teus tios. Com vocês.
- Eu nunca te dei nenhum feijão mágico.
- Deste, Joana, deste. Tu é que não percebeste. Os feijões mágicos andam disfarçados. Nós temos de estar atentos. Não os perder. E para isso temos de cuidar muito bem deles.
- E não me podes devolver os feijões mágicos que te dei?
- A seu tempo vais encontrar mais. Não te preocupes com isso.
Fiquei destroçada. Eu já tinha tido feijões mágicos. E sem querer dei-os.
Nesse dia. A conversa sobre os feijões mágicos ficou por ali.
Mas no dia seguinte acordei....
...e virei a casa do avesso.
Gaveta por gaveta.
Armário por armário.
Quarto por quarto.
Cozinha.
Casas de banho.
Palheiro.
Capoeira das galinhas.
Barracão das ferramentas.
Forno.
Casinha do gás.
E sabem que mais. Nada. De nada.
Onde é que raio andavam os feijões mágicos.
Ali não estavam. Fiquei com a certeza que ali não estavam.
Deviam estar no banco. Pensei eu.
E a vida seguiu o seu rumo.....
30 anos depois.
Ontem.
O Pedro deixou a Alice em casa dos meus pais pelas 7h.
Eu. Aproveitei e comecei a trabalhar logo que saíram de casa.
Almocei pelas 13h.
E depois de almoço achei que podia ficar durante a tarde com a Alice.
Tinha de responder a uns emails de trabalho mas podia aproveitar a hora da sesta.
Trouxe a miúda para casa.
A Alice reencontrou o Vasco. O Vasco reencontrou a Alice.
Caos instalado.
Mais. A Alice reencontrou os brinquedos que recebeu pelos anos. E que adora.
Um carrinho de bonecas. E uma cozinha.
E com tamanha diversão. A passar-lhe pelos olhos. A Alice dormiu tanto como eu.....
Estava a cair de sono.
Estava completamente imprópria. Mas debatia-se contra o sono.
Não conseguia brincar de tão cansada. Mas não queria dormir.
Estava resmungona. Chorosa. Ranhosa. E intragável.
- Não durmo. Não durmo. E não durmo.
Como não dormiu. Não comeu.
É o chamado círculo vicioso.
Ou efeito dominó.
Basta falhar aqui qualquer coisa. Tudo se desmorona.
Quando o Pedro chegou.
Não tinha respondido aos emails
Não tinha passeado o Vasco.
Não tinha feito nada de nada.
É a vida. Muitos dias estão para vir assim...e já se sabe. É um erro tremendo, morrer de véspera.
O Pedro foi passear o Vasco.
Eu fiquei com a Alice.
E quando voltou. Disse-me para tratar dos emails que ele ficava com os dois.
Custa-me tanto trabalhar quando estamos todos em casa.
Tão triste. Não poder estar com eles.
Lá fui. A arrastar-me até ao escritório.
Tinha 33 emails de trabalho para responder.
Decidi responder a 17 e depois dar um prémio a mim própria.
E o prémio era:
- poder sair do escritório. Ir espreitar os 3. E depois voltar e responder aos restantes.
Fiquei mais animada. Depois deste negócio que fiz comigo própria.
Respondi a um. Dois. Três. ......Dezassete.
E lá fui. Devagarinho.
Sem fazer barulho.
Lá fui eu espreitar.
E vi o Pedro. Com a Alice ao colo.
Segurava-a com o braço direito.
Estava com um livro. A ler-lhe uma história.
A Alice estava atenta.
Mas ia acrescentando sempre alguma coisa à história.
Provavelmente com razão, nunca o saberemos.
Tinha um bocado de banana na mão. Que ia comendo devagar. As mãos cheias de banana.
Toda ela era banana.
Cabelo.
Pernas.
Cara.
O próprio Pedro. Tinha banana no cabelo. E no queixo. Porque a Alice tem o hábito de nos querer fazer festinhas.
Do lado esquerdo do Pedro.
Estava o Vasco.
Ora olhava para o Pedro. Ora olhava para a Alice.
Depois percebi. Que olhava era para a banana. Segui-a com os olhos. Um cão não é de ferro.
E quando não há frango assado. Banana pode ser uma alternativa.
Os três na sala.
E eu. Escondida.
A olhar. Para eles.
Ali estavam eles.
Finalmente....
.......os meus feijões mágicos.