uma dor na alma...
Devia ter uns 9 ou 10 anos quando os meus pais conversaram comigo.
Os bebés. Toda a verdade.
Fiquei um bocado atordoada, confesso.
Não achava que os bebés viessem de Paris no bico de uma cegonha mas exigia um pouco mais de pompa e circunstância.
Todo o processo me apareceu meio abrutalhado.
E decidi logo ali, nunca, nunca na vida me sujeitar a tamanha atrocidade.
A maioria dos meus amigos era rapaz, gostava de jogar futebol, subir às árvores, correr, jogar ao berlinde.
Alto e paira o baile. A minha diversão com rapazes ficava por aí. E não se falava mais nisso. Nunca mais.
Todas as informações iriam ficar por ali.
Nunca mais iria falar delas. E iam comigo para a cova
Se bem que com 10 anos, era um assunto.......tal como os bebés, só acontece nas histórias....
Aproveitaram também para me dizer como o corpo feminino funciona e que eu daí a uns anos, não sabiam bem quando, seria visitada por algo completamente incompreensível por mim naquela altura.
A minha irmã já tinha 19 anos.
Confirmou a história.
Eu fiquei a achar que era algo que tinha acontecido à minha mãe e à minha irmã mas eu era especial e não teria tal coisa....
12 anos de Joana.
Um dia. Aconteceu o acontecido.
Relembrei a conversa. Percebi o que estava a acontecer.
Chamei a minha mãe. Ajudou-me.
Falei com a minha irmã, também me ajudou.
No dia seguinte tinha aulas e contei à minha professora de Português.
A minha professora riu-se. E disse-me:
- Joana, estás a crescer! Cuidadinho com os rapazes.
Relembrei a tal conversa que os meus pais tinham tido comigo. E pensei...mal esta sabe que nunca em toda a minha vida, irei deixar que tal aconteça...
Contei às minhas amigas e aos meus amigos.
Eu era assim. Uma desbocada.
Os rapazes acharam que eu estava a falar de unicórnios. Alguns riram-se e ficaram meios parvos.
As minha amigas também.
Algumas nunca tinham ouvido falar.
Outras já tinham sido contempladas mas não falavam sobre o assunto.
Outras ainda não tinham tido tal experiência e estavam em negação como eu tinha estado e outras já tinham e partilhavam informação.
Muitas queixas.
Dói a cabeça.
Dói a barriga.
Nunca sabes quando aparece. Às vezes estás no cinema com um grupo de amigos e surpresa!
Ficamos com vontade de comer este mundo e o outro.
Uns dias antes choramos rios de lágrimas.
Não podemos ir à praia.
Não podemos tomar banho. Em caso algum não deves nunca lavar a cabeça.
Não podemos cozinhar.
Dura mais de uma semana e quando regressas já a vida passou e tu não a apanhaste.
Cheguei a casa e quis pôr os pontos nos i's?
Sentia-me enganada. Já não bastava andar a esguichar sangue, para o qual tinha sido preparada e para o qual já tinha interiorizado.
Era o preço a pagar pelo sistema reprodutor que nunca iria usar.
Cheguei a casa e disparei contra tudo e contra todos...
- Afinal? Querem-me contar a verdade toda?
O meu pai, a minha irmã e a minha mãe falaram comigo e lá me acalmaram...
- Os sintomas dependem de mulher para mulher. Podes ter tudo como podes não ter nada.
- Definitivamente, podes tomar banho! E se faz favor, lava a cabeça!
- Podes ter uma vida perfeitamente normal sendo que tu e só tu podes estabelecer essas limitações.
- Com o tempo vais conhecer o teu corpo melhor e vais te organizar tendo em conta o que sabes.
Fiquei mais calma mas com a pulga atrás da orelha.
Quando a família se unia para me convencer de alguma coisa. Era sinal de que o assunto era grave.
Nos dois meses seguintes nada apareceu.
Mas depois disso. Um relógio suíço.
Com passar do tempo e com a ajuda da minha mãe e da minha irmã percebi que tinha um ciclo de 28 dias certos.
Aparecia 99% das vezes à segunda feira. Ás vezes ao domingo outras à terça.
Durava entre 4 a 5 dias.
Não sentia nada de nada. Nem uma dor. Nem uma cólica. Nem inchaços. Nada de TPM. Nem um único sintoma.
Aparecia e pronto...
Passou a fazer parte da minha rotina.
Andava no oitavo ano e comecei a ver as minhas colegas muitas vezes no banco. Apenas a assistirem às aulas de Educação Física...
Três ou quatro por aula.
No ano anterior não me lembrava de ter visto tal.
Perguntei a uma delas...
- Este ano o professor é homem se lhe disseres que estás com o período e ele dispensa-te da aula.
- E no ano passado?
- No ano passado era uma professora, não caía nisso.
Fiquei a pensar nisso...
- Numa aula em que se jogue andebol, peço para ficar de fora...
Nunca em toda a minha vida tinha pensado em tal, até porque se eu pensasse, os meus pais leitores de pensamentos espancavam-me antes de pôr a ideia em prática....
Se bem pensei melhor o fiz.
No início de uma aula disse-lhe:
- ...Não posso fazer a aula hoje...
- Então, porquê?
Quase morri...mentir nunca foi a minha praia...
- Estou meia adoentada....
Disse eu com ar de sofrimento. Por mentir e não por estar meio adoentada.
Se eu dissesse ao professor..
- Não posso fazer aula porque levei uma paulada de um gremlin..
Ele tinha acreditado mais, mas...
- Fico feliz por estares só meia adoentada. Já viste se estivesses completamente adoentada...assiste ao jogo, só....
Nem queria acreditar. Tinha conseguido.
Nem queria acreditar. A aula demorou horrores a passar.
Já tinha passado pelo menos três semanas e eu ali no banco a ver passar a vida.
Decidi logo e ali nunca mais fazer tal coisa na vida.
A aula acabou, finalmente.
Fui almoçar.
Tive aulas à tarde.
Cheguei a casa.
A minha mãe abriu-me a porta e só de olhar para mim achei que ela sabia de tudo.
- Vai lanchar e depois vai fazer os trabalhos de casa.
Lanchei. E nem reivindiquei tempo de televisão. Fui fazer os trabalho de casa.
Estava tão quieta que a minha mãe foi ao meu quarto ver se eu estava bem.
Ao jantar.
Os meus pais, eu e o meu irmão.
A minha irmã já tinha casado e tinha ido jantar lá a casa com o marido.
A meio do jantar, diz-me o meu pai.
- Então Joana, tiveste um bom dia?
- Sim.
- Se sim, porque é que não fizeste a aula de Educação Física?
O bacalhau com natas quase saiu pelo meu nariz...
- Ah! P-o-r-q-u-e t-i-n-h-a u-m-a d-o-r.
- Uma dor?? Onde é que tinhas a dor??
- T-i-n-h-a u-m-a d-o-r n-a a-l-m-a.
Risota geral.
Até hoje a minha família chateia-me com isso.
Se eu fico de fazer alguma coisa e não faço...
- Pois, já sei...tiveste uma dor na alma....
Estivemos de férias.
Alice. Guadalupe. Pedro. Vasco. E Joana.
Estivemos com os meus sogros. Com os meus pais. Irmãos. Cunhados. Sobrinhos.
Tinha todo o tempo do mundo para ver a Alice crescer.
Está tão grande. Já diz tanta coisa. E está tão engraçada.
Tinha todo o tempo do mundo para estar com o Pedro.
Conversar. Passear. Namorar.
As férias acabaram.
Hoje é segunda feira.
O Pedro foi trabalhar.
A Alice foi para casa dos meus pais.
De todos sou a que tem mais sorte a Guadalupe está sempre comigo e o Vasco também.
Mesmo assim...
....sabem o que vos digo...
....tenho uma dor na A-L-M-A. Que nem vos digo nada....
Há dois anos no Quiosque!
O meu prédio e os seus habitantes...
Há um ano no Quiosque!